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ART | Dintel que descreve o mito de lingodbhavamurti e a consagração de um rei [EDITING]

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COLECÇÃO- The Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque

NOME- Dintel que descreve o mito de lingodbhavamurti e a consagração de um rei

ORIGEM- Camboja central 

ÉPOCA- meados do séc. VII,

período pré-angkor. 

MATERIAL- Arenito

DIMENSÕES- 55X185X28, 466, 3 KG 

    Este Dintel de arenito datado do século VII é um dos mais raros no que diz respeito à representação da imagem e mitos bramânicos, encontrado em Wat Eng Khna, no Camboja central, cidade de Isanapura, hoje intitulada de Sambor Prei Kuk59. Combina de forma única duas narrativas, ambas centrais à promulgação do reinado Khmer. 6061

    Na parte superior do dintel encontramos uma representação da criação do mito de linga, o Lingodbhavamurti, que reconta a disputa entre Brahma e Viṣṇu, em que um refuta a afirmação do outro de ser o criador do universo. Descrições deste mito são extremamente raras no sueste asiático e na India sendo predominantemente confinadas ao templo Tamil Nadu, era de Pallava. O mito assenta principalmente em fontes textuais indianas conhecidas no Camboja, especialmente o Skandapurana, um texto favorecido pelo setor do xivaísmo Pasupata de posição influente no Camboja do século VII.6263

    No segundo registo deste maravilhoso Dintel encontramos uma cena única na arte Khmer. A representação da coroação de um rei, tal como implicado na inscrição Devanika (Vat Phou), dois séculos antes. Aqui vemos o rei em ascendência instalado num pavilhão aberto (mandapa), rodeado pelos dignitários e rsis64estes últimos identificados pelas suas rastas, barbas e as suas cordas sagradas. Dois sacerdotes ao lado do rei despejam então agua sagrada sobre a figura sentada no trono, realizando um abhiseka65

    A descrição completa deste ritual, presente no Satapatba brahmana, culmina com o uso por parte do rei de como que um capacete de pano, sugerindo que a ilustração recria o seu renascimento como um rei consagrado. Podemos com as informações recolhidas argumentar que o que se encontra aqui representado, é muito provavelmente, o ritual pelo qual passou o rei Devanika em Champasak, na parte sul do Laos, no período tardio do século V. 6667

    A inscrição de Devanika diz-nos que o rei foi “colocado em posição de poder supremo pela auspiciosa Sri Liñgaparvata (montanha representante de Shiva), honrada desde a antiguidade, como maharajadhiraja, “rei dos reis””.

    Por outras palavras, esta cerimonia trata-se de uma recriação de um cenário em que o rei existente, realizou um ritual num lugar sagrado Hindu (tirtha) no que corresponde geograficamente a Zhenla do século V, como forma de marcar o seu “renascimento”. 6869

    O dintel, providencia-nos, portanto, uma representação única de dois assuntos inerentes à arte Khmer pré-angkor, assuntos estes raramente representados na arte Indiana. O mito e a consagração coabitam na sua composição como historias paralelas, sendo que a ultima adiciona legitimidade à cena que a antecede. A mensagem inerente nesta obra de arte seria, portanto, a ideia que abordamos anteriormente no contexto histórico e religioso pré-angkor de que cada recém consagrado rei governava com a autoridade de Shiva, invocado segundo um ritual realizado pelo seu beneficio pelos rsis70.71

    Podemos assim ver que, as primeiras associações da realeza do Sueste Asiático com ideias indianas, nos séculos V e VI d.c, baseavam-se grandemente na adoração de Viṣṇu, e não de Shiva. As inscrições de Purnavarman, por exemplo, tornam a identificação pessoal do rei com Viṣṇexplicita, assim como o fazem inúmeras imagens esculpidas de Viṣṇoriundas da parte ocidental da Indonésia, península Tailandesa e do delta do Mekong. A ideia indiana de conceptualizar a realeza, com Viṣṇucomo modelo divino, claramente ofereceu aos reis locais novos meios de se distinguirem dos demais, enquanto personificações do divino na terra. 72

    Por volta do século VII, contudo, a ligação com o xivaísmo começou a aumentar e a ser aceite como um principio universal da realeza do Sueste Asiático, tendo desenvolvido características únicas exclusivas a esta área. Uma característica foi a ênfase no ascetismo, que pode ser associado à predominância dos Pasupatas Bramânicos que foram, como anteriormente referido, um setor do xivaísmo extremo influente no Camboja.73

    Os Pasupatas são referidos também em registos históricos como sendo favorecidos na corte através do papel de conselheiros espirituais, ou até mesmo poetas, no inicio do seculo VII. Um exemplo disto é a atribuição por parte de Isanavarman I a um Pasupata como supervisor de um dos seus templos em Isanapura. Torna-se então uma conclusão muito provável que sejam os Pasupatas, os sacerdotes que realizam o abhisekado Rei no Dintel de Wat Eng Khna.74

    Em conclusão, podemos afirmar que as peças de arte que chegam até aos nossos dias, umas mais intactas que outras, permitem-nos não só ter uma visão relativamente à evolução das técnicas artísticas da civilização em que se inseria, mas também, servem- nos como documentos, registos, que nos possibilitam um acesso a informações imprescindíveis para a compreensão do que existe por detrás da peça, de todas as áreas contextuais que a rodeiam. Dentro da análise destas fontes documentais artísticas, conseguimos também concluir que, as grandes religiões do Sul e Sueste Asiático, principalmente o Hinduísmo e o Budismo apresentam uma partilha de crenças, como a natureza cíclica do templo e universo, a transição do mundo e a ilusão de permanência (maya); que todos os seres vivos nascem e renascem em diferentes vidas e corpos (samsara) e que as boas e más ações de um (karma) acumulam com o número de vidas e determinam a forma em que um irá renascer.


58 Imagem retirada da seguinte fonte: GUY, John, and PIERRE Baptiste. “Lost kingdoms: Hindu-Buddhist sculpture of early Southeast Asia. New York, N.Y.: The Metropolitan Museum of Art”, cat.88, (2014).
59 Local que deu o nome a um dos três estilos arquitetónicos pré-Angkor, e aquele também em que este Dintel se insere.60 SARAN, Shyam, “Cultural and Civisational Links Between india and Southeast Asia: Historical and Contemporary Dimensions”, Springer, pp. 263, (2018).
61 GUY, John, and PIERRE Baptiste. “Lost kingdoms: Hindu-Buddhist sculpture of early Southeast Asia. New York, N.Y.: The Metropolitan Museum of Art”, cat.88, (2014).
62 SARAN, Shyam, “Cultural and Civisational Links Between india and Southeast Asia: Historical and Contemporary Dimensions”, Springer, pp. 263, (2018).
63 GUY, John, and PIERRE Baptiste. “Lost kingdoms: Hindu-Buddhist sculpture of early Southeast Asia. New York, N.Y.: The Metropolitan Museum of Art”, cat.88, (2014).
64 Bramânicos.
65 SARAN, Shyam, “Cultural and Civisational Links Between India and Southeast Asia: Historical and Contemporary Dimensions”, Springer, pp. 263, (2018).
66 SARAN, Shyam, “Cultural and Civisational Links Between India and Southeast Asia: Historical and Contemporary Dimensions”, Springer, pp. 263, (2018).
67 GUY, John, and PIERRE Baptiste. “Lost kingdoms: Hindu-Buddhist sculpture of early Southeast Asia. New York, N.Y.: The Metropolitan Museum of Art”, cat.88, (2014).
68 SARAN, Shyam, “Cultural and Civisational Links Between india and Southeast Asia: Historical and Contemporary Dimensions”, Springer, pp. 263, (2018).
69 GUY, John, and PIERRE Baptiste. “Lost kingdoms: Hindu-Buddhist sculpture of early Southeast Asia. New York, N.Y.: The Metropolitan Museum of Art”, cat.88, (2014).
70 Bramânicos.
71 GUY, John, and PIERRE Baptiste. “Lost kingdoms: Hindu-Buddhist sculpture of early Southeast Asia. New York, N.Y.: The Metropolitan Museum of Art”, cat.88, (2014).
72 SARAN, Shyam, “Cultural and Civisational Links Between india and Southeast Asia: Historical and Contemporary Dimensions”, Springer, pp. 264, (2018).
73 SARAN, Shyam, “Cultural and Civisational Links Between india and Southeast Asia: Historical and Contemporary Dimensions”, Springer, pp. 263, (2018).
74 SARAN, Shyam, “Cultural and Civisational Links Between india and Southeast Asia: Historical and Contemporary Dimensions”, Springer, pp. 265, (2018).

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